Sorrindo até a morte: os perigos ocultos de ser “bonzinho” (traduzido)
- Marcelo Loureiro
- 20 de mai.
- 4 min de leitura
Pontos-chave:
Reprimir a raiva, priorizar o dever e tentar não decepcionar os outros são causas importantes de doenças crônicas.
Ignorar ou suprimir o que sentimos e do que precisamos ativa a resposta ao estresse, empurrando o corpo para um estado inflamatório.
Nossa necessidade de pertencimento nos grupos nos leva a suprimir emoções, em um cabo de guerra entre apego e autenticidade.
Ser bonzinho e agradar os outros — embora socialmente valorizado e geralmente considerado positivo — pode, na verdade, prejudicar nossa saúde, afirma Gabor Maté.
Décadas de pesquisas apontam para a mesma conclusão: reprimir a raiva, priorizar deveres e as necessidades alheias em detrimento das próprias, e tentar evitar desapontar os outros são causas recorrentes de doenças crônicas, segundo o autor do best-seller do New York Times “O Mito do Normal: Trauma, Doença e Cura em uma Cultura Tóxica”.
“Nossa fisiologia é inseparável da nossa existência social”, argumenta o médico canadense. Ignorar ou suprimir o que sentimos e o que precisamos — de forma consciente ou não — ativa nossa resposta ao estresse, gerando inflamação no corpo e comprometendo o sistema imunológico, diz ele.
“Se trabalhamos até a exaustão, se passamos noites acordados atendendo clientes, se estamos sempre disponíveis e nunca tiramos tempo para nós, somos recompensados financeiramente e recebemos respeito e admiração”, diz Maté, “mas estamos nos matando nesse processo”.
Traços de personalidade comuns em pessoas com doenças crônicas
Ao revisar estudos sobre doenças crônicas que tratou ao longo de 30 anos, Maté identificou padrões de personalidade recorrentes:
Preocupação automática e compulsiva com as necessidades emocionais dos outros, ignorando as próprias;
Identificação rígida com papéis sociais, deveres e responsabilidades;
Hiperresponsabilidade voltada para o externo, baseada na crença de que é preciso justificar a própria existência fazendo e doando;
Repressão da raiva saudável e protetiva;
Crenças internalizadas e compulsivas de que “sou responsável pelos sentimentos dos outros” e “nunca devo decepcionar ninguém”.
Segundo Maté, esses traços são tão normalizados culturalmente — muitas vezes vistos como virtudes — que raramente são reconhecidos como fatores de risco para doenças.
Essas características, ele afirma, não têm a ver com força de vontade ou escolha consciente.
Padrões de enfrentamento
“Ninguém acorda e decide: ‘Hoje vou ignorar minhas necessidades em nome do mundo’ ou ‘Mal posso esperar para reprimir minha raiva e fingir que está tudo bem’.” Esses traços não são inatos — são padrões de enfrentamento, adaptações para preservar a conexão com os outros, às vezes ao custo da própria vida.
Desenvolvemos esses traços para sermos aceitos, num conflito entre nossas necessidades de apego e autenticidade. O apego é vital para a sobrevivência, já que somos uma espécie social. Por isso, nos adaptamos às regras e expectativas dos grupos para mantermos pertencimento.
Mas também precisamos de autenticidade para manter a saúde. Somos programados para sentir e agir com base nas emoções — especialmente as negativas. Elas funcionam como alarmes para nos proteger. O psiquiatra Randolph Nesse, da Universidade Estadual do Arizona, afirma que evoluímos para sobreviver, não para sermos felizes ou calmos.
Humor deprimido, raiva, vergonha, ansiedade, culpa, luto — são respostas funcionais para enfrentar os desafios do ambiente. Emoções sensíveis, como alarmes, nos ajudam a reconhecer ameaças. Até mesmo o desconforto de um humor baixo indica que não há recompensas suficientes no ambiente, nos motivando a conservar energia ou buscar novas condições — como se recolher na cama vendo Netflix até que o cenário melhore.
A raiva também é essencial: é a força que nos mobiliza contra injustiças e obstáculos. O maior inimigo da justiça social não é a oposição ativa, mas a apatia. Até a ressentida raiva silenciosa tem valor: é o alarme que diz que nossos limites estão sendo desrespeitados, antes mesmo de termos clareza racional sobre o que está acontecendo.
Reprimir emoções vitais
Mas a necessidade de pertencer aos grupos faz com que suprimamos esses sinais emocionais vitais, afirma Maté. Ainda mais preocupante: suprimir emoções de forma consciente aumenta a resposta ao estresse e prejudica a saúde.
“O estresse crônico, de qualquer origem, deixa o sistema nervoso em alerta, desregula os hormônios, enfraquece o sistema imunológico, promove inflamação e prejudica a saúde física e mental”, diz Maté. E estudos mostram que um corpo em estresse crônico permanece inflamado — estágio inicial de doenças como câncer, Alzheimer, doenças cardíacas, autoimunes, depressão, entre outras.
Maté frisa que isso não deve ser usado para culpar pessoas por suas doenças. “Ninguém é a sua doença, e ninguém fez isso consigo mesmo de forma consciente ou deliberada”, diz. “A doença é resultado de gerações de sofrimento, de condições sociais, de traumas na infância, de uma fisiologia sobrecarregada por estresses e histórias emocionais, em interação com o ambiente físico e psicológico.”
Traços de personalidade muitas vezes refletem o grupo social em que nos desenvolvemos, afirma. “Os papéis que nos são atribuídos ou negados, como nos encaixamos ou somos excluídos da sociedade, e o que a cultura nos faz acreditar sobre nós mesmos determinam muito da saúde ou das doenças que temos.” Para Maté, saúde e doença são reflexos do macrocosmo social.
Não é surpresa, então, que desigualdades sociais afetem profundamente a saúde. Os mais desprivilegiados são os que mais precisam reprimir emoções e necessidades para sobreviver. Por isso, mudar estruturas sociais e combater desigualdades é fundamental para melhorar a saúde, um ponto central do livro O Mito do Normal.
Ao mesmo tempo, podemos desaprender esses padrões e cultivar mais consciência sobre nossas emoções, os sinais do corpo e nossas necessidades — em vez de ignorá-los automaticamente em nome dos outros.
“A personalidade é uma adaptação”, diz Maté. “O que chamamos de personalidade é muitas vezes uma mistura de traços genuínos e estilos de enfrentamento condicionados, alguns dos quais não refletem nosso verdadeiro eu — mas sim sua perda.”
A verdadeira cura, segundo ele, vem quando nos abrimos para as verdades da nossa vida, passadas e presentes. “Depois de um tempo observando, oportunidades reais de escolha começam a surgir antes de traímos nossas verdadeiras vontades e necessidades”, diz. “Talvez, agora, consigamos pausar e dizer: ‘Hmm, percebi que estou prestes a reprimir esse sentimento ou pensamento — é isso mesmo que quero fazer? Existe outra opção?’
“O surgimento de novas escolhas no lugar das velhas reações automáticas é um sinal claro de que nosso eu autêntico está voltando à tona.”